Confira a introdução do novo livro de Valmir Nascimento, Seguidores de Cristo: Testemunhando numa Sociedade em Ruínas, que servirá de literatura de apoio para a lição bíblica jovens da Escola Dominical.
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A grande maioria de nós, cristãos, não sabemos lidar muito bem com a palavra mundo. Somos rápidos em apontar suas mazelas, feiuras e horrores, mas não temos tanta habilidade assim para propor soluções genuinamente bíblicas para os seus problemas. É lugar comum se afirmar que vivemos em um mundo corrompido, onde impera a desordem, a imoralidade, a violência e todos os demais efeitos estruturais do pecado, todavia, poucos no meio evangélico têm se preocupado em enfrentar as questões sociais e culturais da nossa época.
Na melhor das hipóteses, temos sido demasiadamente simplistas ao tratar de questões sociais complexas. Temos a mania de dar respostas prontas para temas difíceis, proferimos bordões para amenizar o medo e invocamos o “poder da oração” quando não sabemos o que fazer. Tal se deve à enorme inabilidade para compreender a cultura de hoje e para nos envolver com assuntos que fogem da rotina eclesiástica. Somos bons em louvor congregacional, mas não sabemos nada sobre meios de comunicação; demonstramos grande competência na área de educação cristã, mas pouco nos preocupamos com o ensino secular; temos um certo conhecimento em administração eclesiástica, mas quase nada em envolvimento político; pregamos bastante sobre o amor, mas revelamos negligência sobre temas como desigualdade, violência, fome, corrupção e outros assuntos urgentes.
Não raro, os argumentos escatológicos sobre a volta de Jesus e as profecias bíblicas são usados sub-repticiamente como mecanismo de fuga da realidade e escapismo social, algo que parece ser um enorme contrassenso: a esperança futura parece aniquilar uma vida esperançosa aqui e agora.
Tudo isso parece contrapor a ordem bíblica para que o cristão seja sal da terra e luz do mundo. A palavra que melhor define essa dupla alegoria empregada por Cristo acerca dos seus discípulos é «relevância». Em um mundo marcado por violência, fome, perseguição e outras doenças sociais, nada parece ser mais grave para o testemunho cristão que uma postura de irrelevância e indiferença. Isso porque, como declarou David Platt, “o evangelho é a força vital do cristianismo e proporciona o fundamento para confrontar a cultura, pois, quando cremos de verdade no evangelho, começamos a perceber que ele não só constrange o cristão a confrontar as questões sociais à sua volta, mas também cria de fato uma confrontação com a cultura ao seu redor – e dentro de nós”[1]. Logo, se acreditamos que o Evangelho é, de fato, a verdade de Deus, espera-se que demos provas públicas de que ele é capaz de transformar o homem e mudar a realidade sociocultural à nossa volta.
Não é acertado, é claro, negligenciar que o envolvimento dos crentes com as questões de ordem social exige sabedoria e muito cuidado – como todas as demais coisas na vida cristã, para não incorrermos no equívoco de transmutar, por um lado, a essência e o propósito da igreja na terra, reduzindo-a a uma agência de cunho social, ou no erro de limitar a atuação da comunidade cristã ao âmbito da pura religiosidade, por outro.
Estes extremos são perigosos, na medida em que circunscrevem a obra redentora de Cristo àquilo que Dallas Willard chamou de “evangelho de administração do pecado”. Segundo Willard, esse evangelho se polariza em duas alas: ala da direita e ala da esquerda. Enquanto para a primeira o foco da fé cristã é o perdão dos pecados; para a segunda, a eliminação dos males sociais ou estruturais causados pelo pecado. Para o evangelho da direita, a expiação se transformou na totalidade da mensagem de Jesus e a justificação tomou o lugar da regeneração. Enquanto isso, a ala da esquerda propugna um evangelho de justiça social, de dedicação aos oprimidos, à libertação ou simplesmente à “comunidade”, como parte essencial do compromisso cristão. A boa nova segundo essa visão, diz Willard, era que o próprio Deus estava por trás da libertação, da igualdade e da comunidade; e que Jesus morreu para promovê-las, ou pelo menos pela falta delas.
Devo concordar com Willard quando ele foge dessas visões extremas do Reino, porquanto ambas carecem de uma relação essencial com a vida integral da pessoa, tornando-se irrelevante, na medida em que tratam da culpa do pecado independente da vida em sociedade, ou de males estruturais (pecados sociais) e do que fazer a respeito dele, somente. Como consequência natural, a vida real continua sem esses “evangelhos”[2]. Ficamos, então, sem uma ponte eficaz que ligue a fé à vida, esquecemos da importância do discipulado cristão e mais grave ainda, nos alienamos. Diante disso, Willard propõe que resgatemos a integração da fé cristã à vida como um todo; o que ele chama de vida eterna agora – em meio ao trabalho, aos negócios, e à carreira profissional. Em outras palavras, devemos viver intensamente o Reino de Deus agora!
O Reino de Deus foi e sempre será o elemento-chave pelo qual os discípulos devem compreender a vida cristã no presente século. Aliás, sobressai nos Evangelhos o ensino de Jesus acerca do Reino, tanto na sua dimensão presente quanto futura. Enquanto o aspecto futuro alude aos eventos escatológicos, quando Cristo finalmente triunfar sobre todo o mal e oposição e entregar o reino a Deus Pai (1 Co 15.24-28; Ap 20.7-21.8), a dimensão presente teve início com o ministério terreno do Filho de Deus entre os homens (Mt 4.17; 12.28; Mc 1.15; Lc 18.16,17), e continua vivo ainda hoje. O teólogo britânico John Stott chamava essa dupla realidade do Reino de “Já” (Reino presente) e o “Ainda não” (Reino futuro).
O nosso desafio como cristãos é viver num mundo caído sem nos esquecer da realidade do Reino, por meio do qual podemos compreender todas as mazelas que irrompem na sociedade, sem perder a esperança. Recorrendo uma vez mais a Dallas Willard, ele recorda que quando Jesus nos exorta a orar – “Venha o teu reino”- ele não quer dizer que devamos orar para que ele venha a existir. Antes, “oramos para que ele assuma o controle de todas as posições das ordens pessoal, social e política das quais está hoje excluído”[3]. Ao dizer “assim na terra como no seu”, prossegue Willard, “nós invocamos o reino, assim como na fé nós colocamos em prática, para que ele desça ao mundo real do nosso cotidiano”.[4] Isso significa que o nosso cotidiano, mesmo em tempos sombrios, deve ser inundado pelo Reino.
A essa altura já deve ter ficado claro que a ideia de relevância cristã não tem a ver com projeto político eclesiástico, ativismo religioso ou um certo tipo de socialismo cristão. Refere-se, isso sim, ao testemunho pleno dos cristãos em um mundo fraturado e sedento de Deus. Diz respeito ao viver cristão que honra a comissão de Jesus para que seus discípulos sem sal da terra e luz no mundo.
A relevância que aqui tenho em mente traz consigo também esperança. Não me refiro nem à esperança fruto do otimismo secular, que deposita a confiança no progresso da ciência da tecnologia, nem à esperança que se estriba no “otimismo religioso”, do tipo que aproveita a ansiedade humana, “fornecendo respostas ‘piedosas’ simplistas para questões complexas”, como bem sublinhou Tomás Halik em A noite do Confessor[5]. Segundo Halík, no sentido cristão, esperança significa “esperar contra a esperança”, em alusão à afirmação do apóstolo Paulo. Nas palavras de Halík: “Isso deve-se ao fato de essas virtudes estarem baseadas num grande paradoxo pregado por Jesus de Nazaré (e que permeia toda a Bíblia): aquilo que é impossível às pessoas, é possível a Deus. Nada é impossível a Deus”[6].
É preciso ter em vista que a correta compreensão da esperança cristã não é uma questão trivial. Nas palavras de N. T. Wright tal esperança “oferece uma base firme e estimulante para desempenharmos nosso papel no mundo atual”[7]. A esperança revela o real sentido da vida e faz com que cristãos genuínos demonstrem confiança mesmo em tempos difíceis. É que se acreditamos na vida após a morte, com Cristo, mais ainda devemos crer que há vida abundante também antes dela (Jo 10.10). Em vez de nos levar à alienação, afastando-nos dos problemas deste mundo, a crença na vida futura deveria nos conduzir ao envolvimento diligente com as questões que fazem a sociedade sangrar lentamente. Isso porque, para usar a expressão de Gordon Fee, somos uma “comunidade escatológica”.
Wright lembra, a propósito, que foram os cristãos que acreditavam piamente na ressurreição que se opuseram a César no início da igreja primitiva, e não aqueles que optaram por uma vida mais espiritualidade e, consequentemente, ascética. Afinal, “a crença na ressurreição sempre vem acompanhada por uma forte visão da justiça de Deus. Essa crença não leva a uma tolerância passiva diante das injustiças do mundo”[8]. Diferentemente, ela leva ao envolvimento com a sociedade e ao enfrentamento dos seus problemas.
A relevância pentecostal na esfera pública
O que foi dito até este ponto vale para o Cristianismo em geral e para o Pentecostalismo em particular. Falando a partir de uma perspectiva de quem acredita na atualidade dos dons, no Batismo com o Espírito Santo e na glossolalia, devo ressaltar que os pentecostais temos sido caracterizados como um povo de muito poder mas pouco envolvimento com as questões de natureza pública. Gregory J. Miller afirmou que “acentuando a experiência de Deus na conversão e também uma dotação especial pelo Espírito Santo para o serviço e ministério cristãos (Atos 2.4; 1 Coríntios 12), os pentecostais trouxeram energia para o evangelismo e missões mundiais”[9]. Tal assertiva é verdadeira, mas por que essa energia não é percebida também na esfera pública, em todos os setores da sociedade?
Não deveria ser assim, pois um dos fatores que distingue o
Pentecostalismo das demais vertentes do protestantismo é a sua crença na continuidade dos dons – e a consequente capacitação para o testemunho público, assim como o entendimento de que o livro de Atos fornece um modelo para a igreja contemporânea. Nas palavras de Robert Menzies: “A hermenêutica do crente pentecostal típico é direta e simples: as histórias em Atos são minhas histórias — histórias que foram escritas para servir de modelo para moldar a minha vida e experiência”[10]. Se as narrativas de Atos nos servem de modelo, como de fato acreditamos, segue-se que deveríamos dar semelhante testemunho impactante que os irmãos da igreja primitiva deram, sem nos limitar ao âmbito eminentemente religioso.
Além disso, de maneira mais articulada, a teologia pentecostal também pode refletir sobre questões públicas a partir de seus próprios pressupostos teológicos, sem depender inteiramente de outras tradições religiosas (Foi-se o tempo em que se achava que o pentecostalismo era um movimento a procura de uma teologia). Dentro dessa perspectiva, o teólogo pentecostal Amos Yong afirma que, embora se suponha que o pentecostalismo seja uma teologia baseada na experiência, espiritualidade ou piedade, é possível se extrair dela implicações normativas para a fé cristã em praça pública. Ele observa que uma reflexão teológica distintamente pentecostal não é apenas uma atividade paroquial, “mas tem potencial construtivo para iluminar a crença e a prática cristã no século XXI”[11].
Com base nessa premissa, Amos Yong recorda que as cinco afirmações teológicas do pentecostalismo (Jesus salva, santifica, batiza com o Espírito Santo, cura e em breve voltará para reinar), que formam o Evangelho quíntuplo, serve como uma estrutura analítica para a autocompreensão distintiva e coerente do pentecostalismo, honrando a sua natureza plural, ao mesmo tempo em que é útil para pensar teologicamente a participação social, política e econômica dos carismáticos.
De fato, embora as cinco máximas doutrinárias da teologia pentecostal possam ser consideradas simples por alguns, elas honram as Escrituras, exaltam a centralidade e soberania de Cristo, e fornecem diretrizes cardeais para o nosso envolvimento com a sociedade contemporânea, tendo o evangelho de Atos como modelo.
Com efeito, Jesus como Salvador e libertador, enfatiza o Senhorio de Cristo e a Majestade de Deus sobre toda a criação, revelando o poder de Jesus sobre a morte e o pecado.
Jesus como santificador aponta para restauração e santificação do povo de Deus e incluem não somente sua purificação, mas também sua consagração para testemunhar e contribuir com a redenção do mundo[12], implicando assim consequências políticas. Contudo, tendo como exemplo a igreja primitiva, ao mesmo tempo em que preserva certa marginalidade e separação cristã em relação ao mundo, uma política de santidade inspira compromisso cultural de engajamento e transformação, discernido pelo Espírito e conduzido para a glória de Deus. Além da erradicação dos efeitos do pecado no nível pessoal, a santidade conduz à busca da perfeição que trás efeitos sócio-políticos, impactando organizações e instituições locais.
Jesus como aquele que batiza no Espírito Santo – permite articular, conforme Yong, uma política profética na sociedade civil. Classicamente, a teologia pentecostal compreende o batismo no Espírito Santo como um revestimento de poder divino, que capacita o cristão para o testemunho e evangelização do mundo. Além disso, o empoderamento do Espírito capacita o crente para testemunhar explicitamente na praça pública, instigando também para uma vida de comunidade, mutualidade e generosidade.
Em Jesus como curador Amos sugere que as curas corporais não são eventos tão somente milagrosos, mas soteriológicos, como sinal do Reino de Deus. Inspirada pelo Espírito, a igreja é, então, a manifestação da cura, reconciliação, paz e justiça[13]. No plano econômico, ao invés de ser dominada pela lógica do mercado de troca e suas transações de oferta e demanda, a igreja é guiada pneumatologicamente pela graça, perdão e solidariedade, servindo a Deus e não a Mamom.
Quanto ao último elemento, Jesus como o rei que está voltando, aponta para uma dimensão escatológica da teologia pentecostal. Enquanto Deus derrama o seu espírito no tempo presente, ainda trabalha ativamente na esperança do reino vindouro. Com efeito, a dimensão escatológica da teologia política de matriz pentecostal refere-se não meramente a crenças do porvir, mas orienta a prática cristã no presente. A esperança cristã engloba o dom do Espírito que nos atrai para a história de Jesus e evita uma mentalidade escapista, permitindo um desempenho em praça pública,[14]como um povo de oração, adoração, e louvor, testemunhando os poderes da Cruz, como antecipação da restauração futura.
Assim, para que a igreja possa ser relevante em um mundo caído e corrompido, devemos nos lembrar dessas verdades simples, mas poderosas: Jesus salva e liberta, santifica, cura, batiza no Espírito Santo e em breve voltará.
É exatamente a partir desta perspectiva que o presente livro foi escrito. Embora tenha sido produzido com o propósito de servir como apoio à lição bíblica de jovens com de mesmo título, as reflexões e pesquisas aqui contidas são mais abrangentes, com o propósito de discutir sobre diversos temas que emergem na sociedade contemporânea, a respeito dos quais somos chamados a dar respostas contundentes à luz das Escrituras e das convicções cristãs. Mais que isso, é um convite ao testemunho no poder do Espírito
[1] PLATT, D. Contracultura: um chamado compassivo para confrontar um mundo de pobreza, casamento com pessoas do mesmo sexo, racismo, escravidão sexual, imigração, perseguição, aborto, órfãos e pornografia. São Paulo: Vida Nova, 2016, p. 19.
[2] WILLARD, D. A conspiração divina: um roteiro para trilhar o caminho de Deus. São Paulo: Mundo Cristão, 2001, p. 74, 75.
[3] WILLARD, 2001, p. 47.
[4] WILLARD, 2001, p. 47.
[5] HALÍK, T. A noite do confessor: a fé cristã num mundo de incerteza. Petrópolis/RJ: Vozes, 2016, p. 20.
[6] HALÍK, 2016, p. 30.
[7] WRIGHT, N. T. Surpreendido pela esperança. Viçosa/MG: Ultimato, 2009, p. 16.
[8] WRIGHT, 2009, p. 45.
[9] PALMER, M. D. (Org.). Panorama do Pensamento Cristão. Rio de Janeiro: CPAD, 2001. p. 143
[10] MENZIES, R. Pentecostes: Essa História é a nossa História. E-book Kindle. Rio de Janeiro: CPAD, 2016, p. 322.
[11] YONG. A. In the Days of the Caezar: Pentecostalism and Political Theology (Sacra Doctrina: Christian Theology for a Postmodern Age). E-book Kindle. Grand Rapids, Michigan: The Cadbury lectures, 2009, p. 142
[12] YONG, 2009, p. 2237.
[13] YONG, 2009, p. 3363.
[14] YONG, 2009, p. 3947.