por Valmir Nascimento
Finalizando a nossa série de postagens sobre a Visão de Jesus, falaremos hoje sobre a Redenção.
Embora a Queda tenha trazido caos, desordem e corrupção ao mundo, e principalmente separação entre Deus e o homem, o Cristianismo afirma que há esperança e possibilidade de mudança por meio da Redenção. Este elemento completa a tríade da visão de Jesus e, consequentemente, da cosmovisão bíblica: Criação, Queda e Redenção.
Na perspectiva cristã, a Redenção somente ocorre por meio de Jesus Cristo, cuja morte e sangue proporcionou a religação do homem a Deus (Rm 3.24; Ef 1.14). A palavra vem de redimir, que significa o pagamento de uma dívida a fim de obter libertação. Paulo escreve: “Em quem temos a redenção pelo seu sangue, a saber, a remissão dos pecados” (Cl 1.14).O escritor da carta aos Hebreus expressa da seguinte forma: “Nem por sangue de bodes e bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna redenção” (Hb 9.12).
A ideia essencial da redenção é que, enquanto a queda afastou o homem de Deus, Cristo nos reconciliou (2 Co 5.18-21) com Ele, pagando o preço de morte, por meio de seu sangue precioso, de forma substitutiva. Enquanto a queda trouxe condenação, Cristo trouxe perdão dos pecados e justificação pela graça (Rm 5.18). Enquanto a Queda trouxe morte espiritual, Cristo trouxe vida eterna (Ap 5.9-10). Enquanto a Queda trouxe maldição, a Redenção proporcionou liberdade do opróbrio do pecado (Gl 3.13). Além disso, a Redenção proporciona adoção à família de Deus (Gl 4.5), libertação da escravidão do pecado (Tt 2.14; 1 Pe 1.14-18), paz com Deus (Cl 1.18-20) e a habitação do Espírito Santo na vida do cristão (1 Co 6.19-20). O apóstolo Pedro também escreve: “Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, para que, mortos para os pecados, pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados”. Pedro parafraseia o trecho de Isaías 53, uma das passagens bíblicas mais contundentes sobre a obra vicária do Filho de Deus.
O significado do evangelho é exatamente o anúncio das boas novas da obra redentora efetuada na cruz do Calvário. É a mensagem gloriosa do Reino. Mas, essa mensagem só tem eficácia para aqueles que creem. Jesus disse: “Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim tem a vida eterna” (Jo 6.47). Em outra ocasião ele foi mais enfático: “Aquele que crê no Filho tem a vida eterna; mas aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece” (Jo 3.36). Paulo também ressaltou a necessidade de confessar ao Senhor Jesus, e crer que Deus o ressuscitou dentre os mortos (Rm 10.9).
Cristo deveria ter morrido?
Muitas pessoas perguntam: por que Jesus precisou morrer? Deus não poderia ter perdoado toda a humanidade sem a necessidade da cruz? Ao responder esse questionamento Timothy Keller recorda, em seu livro A Fé na Era do Ceticismo, que Deus não infligiu sofrimento a outrem, mas absorveu ele próprio, na cruz a dor, a violência e o mal do mundo, pois Jesus é Deus. Por esse motivo, afirma Keller, o Deus da Bíblia não é como as deidades primitivas que exigiam nosso sangue para aplacar a própria ira. “Ao contrário, esse é um Deus que se fez humano e ofereceu seu sangue a fim de honrar a justiça moral e o amor misericordioso de modo e poder um dia destruir todo o mal sem nos destruir”. Ele continua:
“Por isso, a cruz não é meramente um exemplo atraente de amor sacrificial. Desperdiçar a vida inutilmente não é nada admirável – e errado. A morte de Jesus só é um bom exemplo se tiver sido mais que um exemplo, se tiver sido algo absolutamente necessário para nos salvar. E foi. Por que Jesus teve de morrer a fim de nos perdoar? Havia uma dívida a ser paga – o próprio Deus a pagou. Havia um castigo a suportar – o próprio Deus o suportou. O perdão é sempre uma forma de sofrimento oneroso”[1].
A lógica que explica a morte sacrificial de Cristo é a mesma que fundamenta a justiça. Se todo crime merece punição, a condenação estabelecida por Deus no Éden também deveria resultar em castigo. E a maravilha da narrativa cristã está em que esse castigo foi executado em Cristo, que livremente se entregou em nosso lugar. Paulo diz de maneira categórica: “Havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz”. (Cl 2.14)
Enxergar como Cristo, então, implica também em olhar com esperança para a humanidade. O homem caído e afastado de Deus, pode ser transformado; o mal e a corrupção podem ser redimidos pelo sangue de Cristo. O ceticismo, o ateísmo, o agnosticismo e muitos outros pensamentos filosóficos não conseguem apresentar um fundamento que forneça a perspectiva de uma nova vida e esperança real para as pessoas. Mas, a cosmovisão cristã sustenta isso com os olhos voltado para a cruz, dando significado e esperança a todos quantos queiram receber a salvação em Cristo. Em esperança fomos salvos, afirmou o Paulo (Rm 8.24).
Evangelhos da administração do pecado
Mas, se a redenção em Cristo proporciona reconciliação, salvação e vida eterna, isso implica dizer que os seus benefícios são destinados somente ao mundo espiritual e tem a ver somente com céu e inferno, sem implicações para a vida social do aqui e agora?
Preliminarmente não podemos perder de vista que as Escrituras parecem deixar transparecer que o foco principal da obra redentora é a salvação da condenação do pecado. Pedro, em sua primeira epístola, escreve que fomos novamente gerados para uma viva esperança, para uma herança incorruptível, incontaminável, e que não se pode murchar, guardada nos céus (1.3,4). Depois ele diz: “Alcançando o fim da vossa fé, a salvação das vossas almas” (1.9). O escritor da epístola aos Hebreus também escreve: “Como escaparemos nós, se não atentarmos para uma tão grande salvação, a qual, começando a ser anunciada pelo Senhor, foi-nos depois confirmada pelos que a ouviram” (Hb 2.3). Igualmente, o apóstolo Paulo vai dizer que o evangelho é o “poder de Deus para a salvação de todo aquele crê” (Rm 1.16).
Contudo, apesar dessas e de muitas outras referências bíblicas acerca do aspecto espiritual da salvação, a obra redentora de Cristo não é exclusivamente um “evangelho de administração do pecado” – termo empregado por Dallas Willard em seu livro A Conspiração Divina. De acordo com Willard, esse “evangelho de administração do pecado” se polariza em duas alas: ala da direita e ala da esquerda. Na ala da direita o foco da fé cristã é o perdão dos pecados; na esquerda, a eliminação dos males sociais ou estruturais causados pelo pecado.
Para o evangelho da direita, a expiação se transformou na totalidade da mensagem de Jesus e a justificação tomou o lugar da regeneração. E assim:
“[…] o único produto seguro da crença é que estamos ‘simplesmente perdoados’. Estamos justificados, conceito que muitas vezes se explica dizendo que, perante Deus, é ‘simplesmente como se eu nunca tivesse pecado’. A pessoa pode até não ter feito nada de positivo, não ter se tornado nada que mereça palavras de louvor. Mas quando chegar às portas do céu, ninguém será capaz de encontrar uma razão para mantê-lo do lado de fora. O mero registro de um momento mágico de anuência mental abrirá a porta”.[2]
Enquanto isso, a ala da esquerda propugna um evangelho de ética e justiça social, de dedicação aos oprimidos, à libertação ou simplesmente à “comunidade”, como parte essencial do compromisso cristão. A boa nova segundo essa visão, diz Willard, era que o próprio Deus estava por trás da libertação, da igualdade e da comunidade; e que Jesus morreu para promovê-las, ou pelo menos pela falta delas.
Dallas Willard procura mostrar então os perigos (ou a incompletude) dessas duas visões radicais acerca do Reino; uma que aponta somente para os efeitos espirituais da redenção e seus benefícios futuros, enquanto a outra foca em demasia o plano terreno, transformando o evangelho em uma boa nova social e romântica. Willard assevera que ambas carecem de uma relação essencial com a vida da pessoa como um todo, tornando-se irrelevante, pois tratam da culpa do pecado independente da vida em sociedade, ou de males estruturais (pecados sociais) e do que fazer a respeito dele, somente. Como consequência natural, a vida real continua sem esses “evangelhos”[3]. Para além disso, ficamos sem uma ponte eficaz que ligue a fé à vida, esquecemos da importância do discipulado cristão e mais grave ainda, nos alienamos.
Para equacionar esse dilema, Willard resgata a necessidade de integrarmos a fé cristã à vida como um todo; o que ele chama de vida eterna agora – em meio ao trabalho, aos negócios, e à carreira profissional. Para isso, ele propõe como ponto de partida essencial a consideração de Jesus como Senhor e também Mestre, mas não no sentido atribuído pelos liberais (que o consideram um bom homem, porém, não o Filho de Deus), e sim o Discipulador, o Paradigma de todos os cristãos. Segundo ele, o Reino somente fará sentido se aquilo que Jesus acreditava, praticava e ensinava fizer sentido para nós; e a sua mensagem deve chegar “livre dos legalismos debilitantes, das divisas políticas e dos tradicionalismos dogmáticos que a história já provou serem becos sem saída para a alma”.[4]
Depois Willard apresenta, grosso modo, cinco dimensões da nossa vida eterna no Reino no Meio de Nós, que se distribuem mais ou menos da seguinte maneira:
- Confiança e fé em Jesus,o “Filho do homem”, aquele que foi ungido para nos salvar. As passagens bíblicas para essa dimensão são Jo 3.15; Rm 10.9-10; e 1Co 12.3. Essa confiança é uma realidade, e ela mesma uma verdadeira manifestação da vida “das alturas”, não das capacidades humanas normais. É, como diz Hb 11.1, “a convicção de fatos que se não vêem”. Qualquer um que verdadeiramente possui essa confiança tem absoluta certeza de estar “lá dentro”.
- Mas essa confiança na pessoa de Jesus naturalmente leva ao desejo de ser seu aprendiz na vida do Reino de Deus. Só mesmo um processo histórico contínuo eivado de confusões e falsas motivações poderia nos trazer a esta situação corrente, na qual se considera que a fé em Jesus implica naturalmente ser discípulo dele. A condição de aprendiz de Jesus significa viver no seu mundo, ou seja, colocar em prática os seus ensinamentos (Jo 8.31). E isso gradualmente integra toda a nossa existência no glorioso mundo da vida eterna. Tornamo-nos “verdadeiramente […] livres’ (Jo 8.36).
- A abundância de vida que se alcança quando se é discípulo de Jesus, “permanecendo na sua palavra”, naturalmente conduz à obediência. O ensino que recebemos e a experiência de vivê-lo nos leva a amar a Jesus e ao Pai com a plenitude do nosso ser: o coração, a alma, o entendimento e a força (corporal). E assim aprendemos a amar essa obediência a ele, mesmo quando não compreendemos ou até mesmo quando não “gostamos” do que ele exige. “Se me amais”, disse Jesus, “guardareis os meus mandamentos” (Jo 14.15). E: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me manifestarei a ele” (v. 21). O amor de Jesus nos sustenta ao longo da prática da disciplina e do treinamento que possibilita a obediência. Sem esse amor, não persistimos no aprendizado.
- A obediência, com a vida de disciplina que exige, conduz à completa transformação interior do coração e da alma. E, num processo circular, essa mesma transformação sustenta a obediência. A condição permanente do discípulo passa então a ser a de “amor, alegria, paz, longanimidade [paciência], benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio” (Gl 5.22-23; comparar com 2Pe 1.2-11). E é esse amor autêntico até o nosso âmago mais profundo. Essas virtudes são chamadas de “fruto do Espírito”, pois não são consequência diretas do nosso esforço, mas nos são incutidas à medida que passamos a admirar e imitar a Jesus, fazendo todo o necessário para aprender a obedecer a ele.
- Por fim, vem o poder para fazer as obras do Reino. Uma das declarações mais chocantes de Jesus, também encontrada no “discurso de formatura”, foi esta: “Aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e outras maiores fará (Jo 14.12). É normal que nos sintamos assombrados e incapazes diante dessa afirmação. Mas tenhamos em mente que o mundo em que vivemos precisa desesperadamente que essas obras sejam feitas. Não seria somente por um exibicionismo ou para impressionar a nós mesmos e os outros. Mas, francamente, mesmo uma “obra” modesta já é mais do que a vida da maioria das pessoas pode sustentar. Se uma só das nossas orações vier a ser atendida, com efeitos publicamente visíveis, isso já poderia bastar para atolar alguns de nós em semanas de pretensa superioridade espiritual. Grande poder exige grande caráter para que seja uma benção, não uma maldição, e esse caráter é algo que precisamos adquirir gradualmente.[5]
O que Dallas Willard está dizendo aqui é que a obra redentora atinge toda a essência do ser humano, conduz à obediência, santifica espírito, alma e corpo (1Ts 5.23). A Redenção deve promover transformação de vida. Por isso o evangelho é esplendoroso, e os seus efeitos estão além do registro do perdão divino no céu e da administração do pecado na terra. O evangelho, ao fazer nascer uma nova criatura, salva-nos da condenação eterna (Jo 3.16;17) mas também proporciona mudanças notáveis no individuo; transforma sua mente, modifica seu caráter e conduz seus passos de acordo com as diretrizes do Reino. Quanto isso ocorre, família, amigos, trabalho, sociedade e tudo o mais é afetado pela luz do cristão. É sobre isso que Jesus estava dizendo ao falar sobre os seus discípulos: “Vós sois o sal da terra e a luz do mundo” (Mt 5.13).
REFERÊNCIAS
[1] KELLER, Timothy. A fé na era do ceticismo: como a razão explica as crenças divinas; tradução Regina Lyra. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 164.
[2] WILLARD, Dallas. A conspiração divina: o verdadeiro sentido do discipulado cristão; tradução Eduardo Pereira e Ferreira. – São Paulo: Mundo Cristão, 2001, p. 63.
[3] WILLARD, Dallas, p. 74, 75.
[4] WILLARD, Dallas, p. 79.
[5] WILLARD, Dallas, p. 402, 403.