[Eis uma interessante crítica de Ives Gandra sobre o vetusto Programa Nacional dos Direitos Humanos. Gandra é um dos juristas mais respeitos no Brasil e demonstra com maestria alguns absurdos contidos no decreto presidencial 7.037/09 do sr. Lula da Silva].
O decreto presidencial 7.037/09 tem gerado muita polêmica porque quis incluir na Declaração Brasileira de Direitos Humanos muitos elementos de extrema controvérsia, a par de desdizerem do sentido do que sejam Direitos Humanos.
Realmente, nosso PNDH-3, em que pese 90% de seu conteúdo ser altamente positivo, não faz jus, naquilo que incluiu de realmente atentatório aos Direitos Humanos, à sadia tradição das Declarações Universais, nem da Revolução Francesa (1789), nem da ONU (1948).
Com efeito, se a vida é o primeiro e principal direito humano fundamental, de 1ª geração, e assegurado desde a concepção (art. 4º, 1) pelo Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Humanos (1969), ratificado pelo Brasil, destoa absolutamente da tradição a orientação incluída no PNDH-3 de “apoiar a aprovação do projeto de lei que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos” (Diretriz 9, Orientação Estratégica III, g).
Como se o nascituro, com código genético distinto e vocacionado para o nascimento, ainda pudesse ser considerado como mero órgão da mãe, passível de amputação! Seria de se perguntar se a referida proposta não conflita com a saudável Diretriz 6, que prevê “promover e proteger os direitos ambientais como Direitos Humanos, incluindo as gerações futuras como sujeitos de direitos”. Ora, se o próprio PNDH3 quer dar tratamento aos não nascidos como sujeitos de direitos, como deixa ao arbítrio da mãe o decidir se a criança concebida terá, ou não, direito de nascer? Outra incongruência notória do PNDH-3 é, na mesma Diretriz 7, prever louvavelmente o combate e a erradicação do trabalho escravo (VII), por representar o tratamento do ser humano como objeto e mercadoria, e, ironicamente, no item exatamente anterior, falar em “garantir os direitos trabalhistas e previdenciários de profissionais do sexo por meio da regulamentação de sua profissão” (D.
7, VI, n), quando o reconhecimento legal da prostituição atenta contra a dignidade da mulher, considerada como mero objeto de prazer. Quais os pais que desejam que sua filha seja prostituta? Qual a mulher que vende o próprio corpo por opção? E a diretriz trata da matéria dentro do capítulo que assegura a todos um “Trabalho Decente”! Não é por menos que o programa se proponha, para tanto, “realizar campanhas e ações educativas para desconstruir os estereótipos relativos às profissionais do sexo” (D. 9, III, h). Ou seja, com o uso de eufemismos, procura mostrar a prostituição como uma atividade boa e decente, igual a qualquer outra! Se não é possível erradicar essa triste realidade, o programa deveria promover ações para retirar a mulher dessa situação, a par de, como o fez, proteger as prostitutas contra as violências de que possam ser objeto (a própria prostituição já é uma violência contra a mulher) e assegurar seu acesso aos programas de saúde (D. 7, IV, q).
Mas o eufemismo maior, digno do “Ministério da Verdade” da obra clássica de George Orwell “1984”, é o que propõe a instituição da “Comissão Nacional da Verdade”, para examinar as violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política (D. 23, I, a), “incentivar a produção de filmes, vídeos, áudios e similares, voltada para a educação em Direitos Humanos e que reconstrua a história recente do autoritarismo no Brasil, bem como as iniciativas populares de organização e de resistência” (D. 22, II, c) e “desenvolver programas e ações educativas, inclusive a produção de material didático-pedagógico para ser utilizado pelos sistemas de educação básica e superior sobre o regime de 1964-1985 e sobre a resistência popular à repressão” (D. 24, sobre a “Construção Pública da Verdade”, I, f). Na disputa política desse período ninguém foi santo: nem militares, nem guerrilheiros. Mas reescrever a história, para canonizar os últimos e anatematizar os primeiros também faz lembrar outro livro de Orwell, “A Revolução dos Bichos”, em que o 1º mandamento passa a receber nova versão: “Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros”.
Sem mencionar outros temas altamente polêmicos para serem incluídos reconhecidamente como Direitos Humanos, tais como o casamento entre homossexuais e o seu direito de adoção (D. 10, V, b e c), desconsiderando o direito da própria criança, e a proposta de “desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União” (D. 10, VI, c), desconsiderando que uma das manifestações mais humanas é a da religiosidade e da preservação de seus valores culturais mais profundos, como são, em nossa pátria, os da civilização cristã…
Essas inclusões fazem sombra a aspectos tão positivos e inovadores quanto são os de incentivar a economia solidária e o cooperativismo (D. 4, I, e), de combater melhor os crimes eleitorais (D. 7, IX, b e c) e a pornografia infanto-juvenil na Internet (D. 8, IV, f).
Enfim, o PNDH-3, pelas distorções tópicas que apresenta, se não forem oportunamente corrigidas, não obstante o qualificadíssimo planejamento global, poderá receber o título de “Plano Nacional dos Direitos Desumanos”, por desconhecer a natureza humana e suas exigências.
Na disputa política ninguém foi santo: nem militares, nem guerrilheiros
IVES GANDRA MARTINS FILHO é ministro do Tribunal Superior do Trabalho e membro do Conselho Nacional de Justiça.
Fonte: O Globo
Não posso deixar de concordar com alguns tópicos que aqui foram levantados sobre a desumanidade em relação, por exemplo, as pessoas prostituidas (não concordo com o termo prostitutas, porque elas – as pessoas, homens e mulheres – foram levadas a se prostituirem), bem como em relação ao trabalho escravo e infantil. Porém, em relação a recuperação da memória dos acontecimentos terríveis dos tempos de golpe militar, devo dizer o seguinte: não é o caso de serem santos ou não. O grande problema de entendimento desta questão é que os militares (e quem os apoiou), usaram de recursos do Estado, ou seja, recursos de impostos pagos pelos contribuintes para praticarem os atos de violação contra os direitos das pessoas que pegaram em armas contra eles. Não era uma guerra de países diferentes, mas uma guerra promovida pelos que se apoderaram da maáquina estatal contra cidadãos que contestaram essa ação. E o pior de tudo é que essas ações dos militares foram legitimadas pela instituição jurídica. Os militares que fizeram as atrocidades que fizeram estavam a serviço de um estado ilegítimo, usurpado pela força das armas. Quem pegou em armas contra eles, reagiu na mesma proporção. Erraram? Com certeze. Mas quem errou mais foi quem usou do Estado de direito que existia antes, e que foi destruido pelo golpe, portanto, quem teve seus direitos cassados tem sim direito a reparação por parte deste estado que foi conivente com os abusos cometidos contra a cidadania. Em relação aos militares, deveriam sim ser levados a julgamento pelo que fizeram, mas faltou aos governos que passaram, a devida coragem para faze-lo.