A racionalidade do cristianismo


A história da humanidade é marcada pelo surgimento e extinção de formas exóticas de expressão religiosa. Analisar a história geral e desta delimitar a das religiões já é uma pretensão das mais ingentes, agora falar em captar o fenômeno chamado religião dentro do fluxo da existência humana, exige do pesquisador a decência e a honestidade (consigo, com o objeto, com o método e com as pessoas) de deixar claro que isso só é possível após assumir que, como disse C. S. Lewis, “o resultado da pesquisa histórica depende do ponto de vista filosófico que adotamos, antes mesmo de analisar as evidências. A questão filosófica precisa, portanto, ser considerada em primeiro lugar”.
Esse pressuposto é crucial para a análise de qualquer fenômeno, pois os resultados serão, durante todo o processo, influenciados por esse fundamento inicial. Se a pesquisa parte do princípio que tudo que existe é produto do acaso, da geração espontânea ou abiogênese, então, do ponto de vista puramente pragmático, é preciso explicar o porquê da existência de determinadas disposições que caracterizam o ser humano sem, no entanto, evidenciar qualquer necessidade biológica que as justifiquem. Em outros termos, à luz deste aspecto, não há uma razão plausível para explicar o fenômeno religioso. Em uma pesquisa séria, essa constatação levaria o estudioso a eliminar tal hipótese e aventar outra.

Perscrutando a religião (a disposição do ser humano em se relacionar com o transcendental), pelo viés da criação planejada ― resultado final de um projeto inteligente, cujo Artífice criou todas as coisas com um propósito definido ―, fica mais do que evidente que qualquer conclusão sobre sua origem, finalidade e desenvolvimento, será totalmente marcada por essa cosmologia, concepção de mundo ou cosmovisão.

Assim, deixo clara minha posição (pela revelação bíblica, acima de tudo, pela experiência do dia-a-dia e até pela lógica do surgimento da religião que confunde-se com a própria existência da humanidade e não é meramente uma construção social), de que acredito que Deus é a origem desse desejo inerente à natureza humana, e que foi Ele que insuflou-nos essa ânsia por buscar algo que transcenda a existência material e a percepção sensorial. Para citar um conhecido pensamento de Agostinho em Confissões: “Tu nos fizeste para ti mesmo, e nossos corações estão inquietos até que descansem em ti”.

Involução da religião

David Hume, um dos principais representante do racionalismo iluminista, afirmou em sua História natural da religião (1757), que parece “evidente que a primeira e mais antiga religião da humanidade foi o politeísmo”. Diante desse fato, muitos questionam: “Se o Deus da Bíblia realmente é o único que existe, por que não se encontra nenhum vestígio de inscrições ou figuras representativas dEle?”

Qualquer leitor da Bíblia sabe muito bem que o Eterno condena qualquer tentativa de as pessoas o representá-lo (Ex 20.4). Pouca informação há sobre o período antediluviano, entretanto, é sabido que por um tempo considerável, uma geração de pessoas celebrava o culto ao Senhor, isto é, praticava o monoteísmo, o culto ao único e verdadeiro Deus (Gn 4.4,26; 5.22-24,29; 6.8,9). Sem considerar o período pré-Queda, uma época histórica imediatamente após a Criação (a qual não se sabe quanto tempo durou), que pela leitura do texto bíblico, mostra que o homem possuía uma interação muito próxima com o Divino e, portanto “não havia” curiosidade acerca de Deus (Gn 3.8). Imagina-se que após a Queda, a disposição humana em buscar o transcendental foi uma das primeiras atitudes do homem em que se percebe o seu equívoco em relação aos fenômenos da natureza e da própria existência do universo. Após o rompimento da relação com o divino, o ser humano “perde a memória”, se embrutece e, sem entender o que ocasionava trovões e relâmpagos, por exemplo, inventa uma explicação mitológica para dar conta de assimilá-los. Com isso, cria-se o politeísmo, a ideia de que existia um deus para cada necessidade básica do ser humano.

O ressurgimento do monoteísmo
Considerando o período de existência de muitas outras civilizações, Israel pode ser considerado uma nação “jovem”. Uma das questões debatidas na teologia é justamente a experiência da revelação do Eterno a Abraão (pai da nação israelita). Como se deu a sua experiência com Deus? Em um mundo mergulhado na idolatria, seguir um Deus que se revelou, mas exigiu exclusividade, não é algo tão simples quanto erroneamente se presume. O teísmo é algo tão original e revolucionário, que na época em que a tribo nômade de Israel teve que definitivamente se decidir acerca de servir ou não a Javé, salta aos olhos a dificuldade que o povo enfrentou até se desvencilhar das práticas pagãs e politeístas adquiridas no Egito (na realidade, Israel somente se libertou da idolatria após a dura lição do exílio).
Apesar de se constituir em um simplismo o argumento do ateu Richard Dawkins (retomando obviamente o raciocínio do cético David Hume), de que o monoteísmo é uma evolução do politeísmo e que, o próximo passo de “libertação” do pensamento religioso será o ateísmo, não deixa de ser interessante o reconhecimento de que a crença em um único Deus seja algo mais elaborado do que a credulidade em vários. Se para a mente moderna isto ainda é uma verdade, imagine para a remota época do pai da fé e amigo de Deus que, séculos depois, resgatou o monoteísmo no mundo antigo.
 
A racionalidade do cristianismo
Na linha do teísmo bíblico veterotestamentário, onde há milênios existia a promessa de um momento de restauração da possibilidade de o homem reatar o relacionamento com o seu Criador (Gn 3.15), é imprescindível atentar para o fato de que o advento de Cristo, em sua encarnação, demarca o apogeu de tais oráculos proféticos (Jo 1).
Conforme ilustra Alister McGrath, em Paixão pela verdade: a coerência intelectual do evangelicalismo, “dentro de nós há um relacionamento com Deus – relacionamento fraturado – e uma receptividade para com Deus – receptividade insatisfeita. A criação estabelece uma potencialidade, que o pecado frustra – contudo, a mágoa e a dor daquela frustração continuam vivas em nossa experiência. É esse mesmo senso de vazio que, em si, está por trás da idéia de um ponto de contato. Estamos apercebidos de que algo está faltando. Podemos não ser capazes de dar-lhe o nome. Podemos ser incapazes de fazer alguma coisa a respeito. O evangelho cristão, porém, é capaz de interpretar nosso desejo ardente, o sentimento de não nos sentir realizados, como uma percepção da falta de Deus – e assim prepara o caminho para a realização. Uma vez que reconhecemos que estamos incompletos, que nos falta algo, começamos a pensar se esse vazio espiritual poderia ser preenchido. É este impulso que está por trás da busca humana por realização religiosa – uma busca que o evangelho vira de ponta cabeça com sua declaração de que fomos buscados pela graça de Deus” (p.186).
Sem levar em conta o evangelho pragmático e individualista que existe na atualidade (as pessoas só buscam Jesus pensando em solucionar problemas pessoais), a fé cristã exige do indivíduo o perfeito entendimento da mensagem bíblica e atitudes muito bem refletidas (e não reflexas) e pensadas para que ele possa aceitá-la. À mulher samaritana, no poço de Jacó, Ele disse que os samaritanos adoravam o que não conheciam (Jo 4.22). Quando o apóstolo Paulo fala do culto racional (Rm 12.1), não há como fugir da verdade contida no texto: só pode adorar a Deus aqueles que possuem uma consciência de quem Ele é! O culto não pode ser algo mecânico e rotineiro, antes, para prestá-lo eficientemente, é imprescindível o uso da inteligência, da lucidez e principalmente do sentimento de gratidão e reconhecimento do “tamanho” da dívida que o sangue de Jesus pagou! Acima de tudo existe ainda o mais importante propósito: o ser humano – assim como todas as coisas – foi criado para a glória de Deus.
Diferentemente de outras religiões, o cristianismo – em sua acepção mais essencial, e não banalizada institucionalmente com a multiplicidade de denominações – promove o ser humano e não exige a sua anulação ou rebaixamento (como se animal fosse), a fim de satisfazer algum capricho ascético ou extático de uma divindade narcisista. Distintamente das outras, ele não requer intelectualidade acima da média, mas também não aceita irracionalidade, pois para decidir-se por seguir a Jesus Cristo, é preciso estar plenamente cônscio da realidade do próprio pecado e reconhecer que só o sacrifício vicário e expiatório da cruz é que pode salvar.
O Senhor Jesus Cristo propôs um conceito de liberdade tão elevado para quem quiser segui-lo, que para as pessoas que acreditam que não é possível viver sem as amarras de uma tábua de proibições, composta de ritos e caprichos supostamente divinos, torna-se um perigoso estilo de vida, mas para os que experimentam o novo nascimento e recebem uma nova natureza, ser cristão é começar a viver plenamente sendo tudo aquilo que Deus nos projetou para sermos.
Publicado originalmente: CARVALHO, César Moisés. Fé e Razão – A marcante racionalidade do Cristianismo. Mensageiro da Paz. Número 1.491, ano 79, Rio de Janeiro, CPAD: agosto de 2009.
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