ENTRE OS DIREITOS E AS OBRIGAÇÕES
Por Valmir Nascimento Milomem Santos
Considero o ato de efetuar compras num supermercado extremamente desgastante. Dirigir todo santo mês, entre gôndolas e sessões um carrinho de mão tentando driblar os demais clientes não é um das minhas atividades preferidas. Por isso, nessas ocasiões converso o mínimo; poupo as palavras. No máximo alguns acenos de cabeça, uma saudação aqui, um aperto de mão ali, até o triunfante momento de passar pelo caixa.
Sempre que vamos ao supermercado minha esposa e eu dividimos as tarefas. Ela se encarrega de pegar os produtos de higiene, alimentação, limpeza, lazer, etc, etc. Enquanto eu, é claro, fico com três funções básicas: guiar o carrinho com nosso filho Vinícius a bordo; escolher a marca do palmito em conserva; e, por fim, minha maior serventia, sacar meu talão de cheques.
Em verdade, aproveito esse momento para pensar. Penso em quase tudo. Penso no trabalho. Faço uma reflexão sobre a igreja. Reflito sobre o que hei de escrever nessa coluna. Observo as pessoas que fazem suas compras: uma senhora que escolhe a marca do alvejante, o rapaz que toma café enquanto espera a sua namorada se decidir por qual arroz comprar, uma criança que chora copiosamente aos pés da mãe implorando uma barra de chocolate.
Outro dia lá estava eu – no supermercado. Especificamente, na fila do açougue. Era início de noite. Acabara de sair do trabalho. Apressado. Louco para fazer meu pedido e ir para casa. Enquanto aguardava, fazia minhas observações. Vagava meu pensamento.
Nesse exato instante, um senhor de meia idade, cabelos grisalhos, empurrando um carrinho de compras junta-se à fila, logo depois de mim. Fez um sinal com a cabeça como um sinal de cumprimento, o que eu gentilmente retribuí, com um breve e rápido balançar da cabeça, voltando-me à posição anterior. Mas eis que ouço uma voz:
– Você acha que o Brasil é um País democrático?
Olhei de um lado e de outro para tentar localizar o destinatário daquela pergunta. A pessoa da fila, logo à minha frente acabara de ser atendida, não podia ser ela. A moça da padaria, que trabalhava alguns poucos metros também não esboçou nenhuma reação, estava entregue aos seus afazeres. Não tinha jeito, o destinatário da pergunta era eu, logo eu. Pus-me a imaginar quem em sã consciência faria uma pergunta dessas dentro de um supermercado, na fila do açougue.
O máximo que se ouve em ocasiões como essas são perguntas do tipo: Será que vai chover hoje? Tá calor aqui, não? Você acha que esse produto é bom? Perguntas no melhor estilo “fast food”, rápidas por natureza, indagações para preencher o tempo. Nada como aquela que eu acabara de ouvir. Nada de coisas profundas. Nada de análises. Sem essa de investigações filosóficas, sociológicas e/ou políticas.
Pensei no quão bom seria se minha esposa estivesse presente. Talvez eu diria a ela o seguinte:
“Querida, fique aqui enquanto vou pegar o carvão.”
Pronto, estaria livre de um debate. Mas ela não estava, nem mesmo um amigo salvador, ou um conhecido qualquer, pois bastaria um simples “oi” para me desvencilhar daquela situação. O problema não era a pergunta, mas sim o contexto. Gosto de falar sobre democracia; tenho prazer em debatê-lo, porém, em outras ocasiões. Não estava com vontade alguma de debater democracia entre uma pilha de frangos congelados e uma costela de porco. Não, definitivamente não estava interessado em falar sobre esse assunto, ou qualquer outro do tipo na fila de um açougue. Mas o outro cidadão queria, tanto que ele voltou a repetir:
– Você acha que o Brasil é um País democrático?
Dessa vez, entretanto, sua voz era mais forte, mais intensa, mais enérgica, quase um grito. Tanto que outras pessoas olharam, não somente pra ele, mas pra mim também, o que me fez perceber o quanto eu precisava dar-lhe atenção antes que ficasse nervoso e a coisa complicasse. Antes, porém, pensei comigo: Será que ele me conhece? Já havíamos conversado alguma vez? Será que estava bravo com o governo e resolveu debater com a primeira pessoa de uma fila que encontrasse, no caso, eu? Não sei. A única coisa que eu tinha certeza é que precisava dar uma resposta. Poderia ter feito um preâmbulo acerca do histórico e das mudanças históricas da democracia no Brasil, mas não queria alongar a conversa, então respondi de forma simples e direta:
– SIM!
Pensei que tudo estava resolvido. Mas não estava, nenhum pouco. E aquele homem prosseguiu, com o rosto ruborizado e a voz trêmula:
– Democrático? Brasil, um País democrático? Não, não é não. O Brasil não é um País democrático…
Enquanto ele falava e gesticulava, eu orava em espírito, pedindo para que o açougueiro me chamasse. Mas nada de me chamarem. E o “analista” prosseguia com seu discurso:
– … olha só o que me aconteceu. Somente porque eu não votei em três eleições meu titulo eleitoral foi cancelado. Que liberdade e democracia são essas em que a pessoa é obrigada a votar se não exercer o seu voto o titulo é cancelado?
Pronto! Entendi naquele exato momento qual era o erro daquele homem. Assim como muitos ele não sabia o real significado das palavras democracia e cidadania. A exemplo de outros, atribuiu a esses termos significados completamente desvirtuados, e, sobretudo, colocou-se na posição de vítima. Nosso amigo inoportuno entendia que democracia e cidadania resumiam-se unicamente em direitos. Cheguei a essa conclusão após ouvir sua exposição de propostas de leis que deveriam ser aprovadas pelo legislativo para beneficiar “pessoas como ele”. É claro! Ele era um cidadão, precisava de benefícios. Estava numa democracia, requeria ser “abençoado” pelas leis! Direitos, somente direitos, nada de deveres, essa era a tônica da sua maneira de pensar. Ele ainda não havia compreendido que democracia e cidadania congregam tanto direitos como deveres. Não somente um; não unicamente o outro, mas ambos.
Sob a ótica bíblica, Cristo disse que nós, os cristãos, fazemos parte de um outro reino, o Reino dos Céus. Temos outra cidadania, a cidadania celeste. E é interessante que dentro dos “supermercados da cristandade” vez ou outra encontramos pessoas que também não possuem plena compreensão do que seja essa tal cidadania. Assim como meu “colega de fila”, alguns afirmam possuírem direitos, outros alegam terem obrigações. A primeira turma é a turma dos triunfalistas, vão a Cristo basicamente para receberem alguma coisa: um carro, uma casa, uma cura. A outra turma, dos legalistas, vivem para cumprir regras e seguir normas, não poucas vezes criadas pelo homem.
A cidadania do Reino dos Céus possui os mesmos moldes da cidadania terrena, o vínculo entre deveres e direitos. A conjugação entre ações e dádivas. Obrigações e benefícios. Não que uma seja a causa do outro, pelo contrário, ambos se complementam. Aqueles que pensam que o cristianismo é simplesmente um conjunto de regras, enveredam-se pelo legalismo. Para elas a vida cristã não passa de um monte de normas a ser seguidas, e quando percebem que não conseguirão cumprir todas elas, frustram-se. Aqueles que pensam que o cristianismo é um conjunto de direitos a serem requeridos, equivoca-se. Quando seus pedidos não são atendidos, mudam de igreja em busca de uma “benção” ou de uma “vitória”.
São dois extremos da concepção de cidadania celeste que devem ser evitados. Precisamo fazer como Cristo: andar no meio. Ter equilíbrio e bom sendo. Tendo sempre convicção que o principal direito daqueles que guardam a Palavra de Deus está guardada: a vida eterna. E que o nosso principal dever é real e urgente: pregar o evangelho. Isto é o básico. Esse é o essencial.
Após a minha conversa com o amigo da fila, ainda saí contente. Feliz por saber que as coisas e as concepções podem ser mudadas a partir do diálogo e do ensino. Bastou simplesmente perguntar o seu nome, acalmar os ânimos e rever posicionamentos. Percebi que ele não era tão estranho, que eu não era tão esperto e que minha carne poderia esperar um pouco mais (…).
Caro irmão,gostei demais de “Fila de açougue e cidadãnia celeste”.Apesar de ter o hábito de ler vários blogs,raramente encontro textos tão bons como o seu.Voltarei e se tiver a sua permissão gostaria muito de estar postando esse e outros textos no meu blog que é apenas um veículo de divulgação daqueles que são usados por Deus como você.Aguardo resposta.Fica na paz