DISCÍPULOS DE PÉS SUJOS


A VERDADEIRA HUMILDADE

por Valmir Nascimento Milomem

Max Gehringer , executivo e palestrante internacional, em artigo publicado na Revista Você/SA, conta que em 1990 viajava pelo mundo implantando sistemas de controle de produção. Determinado dia, ele e seu colega de trabalho, um americano chamado Denis, foram parar em Bangkok, na Tailândia, onde a empresa havia acabado de adquirir uma fábrica de alimentos.

Eficientes que eram, resolveram tomar um tuk-tuk – um folclórico táxi tailandês de três rodas – e ir direto do aeroporto para a fábrica, para um inventário prévio de necessidades. Nenhum deles havia visitado a Tailândia antes e até esperavam deparar com situações pouco usuais, mas o que viram superou suas piores expectativas. Ao entrarem na área de fabricação, notaram de imediato que os trabalhadores não trajavam uniformes. Estavam todos de bermudas. E, o que era mais chocante, descalços!

Horrorizados com tamanha desconsideração dos ex-gestores da empresa para com os colaboradores, Max e Denis concordaram que a vistoria dos equipamentos e das instalações poderia ficar para depois. Primeiro, e urgentemente, era dever deles resolver o problema daquela gente humilde, trabalhando ali, certamente tristonha e desmotivada, com os pés no chão.

Segundo Gehringer:

 “Os funcionários devem ter percebido a nossa intenção, porque começaram a olhar insistentemente para nossos sapatos, como se eles fossem alguma maravilha tecnológica. Finalmente, naquela ânsia natural de tentarmos ser entendidos – ninguém ali na produção falava nossas línguas, e, óbvio, nós não falávamos tailandês – resolvemos estabelecer um diálogo através de gestos. Apontamos para nossos sapatos e para os pés nus dos funcionários, e fomos imediatamente correspondidos: eles acenaram positivamente com a cabeça enquanto diziam algo em seu idioma – provavelmente “Nós, os humildes, ficamos gratos por tanta consideração!”.

Então, tudo resolvido: no dia seguinte, comprariam dois pares de sapatos para cada funcionário. Só com isso, teriam a certeza que conquistariam a confiança e a admiração daquela gente. Max e Denis imaginaram fazer da entrega dos sapatos uma grande festa motivacional e, enquanto discutiam os detalhes dela, ocorreu algo que vem ocorrendo em Bangkok já faz alguns milênios: a maré subiu e uma lâmina de água de 15cm cobriu o chão da fábrica. Tão rapidamente que ninguém teve tempo para correr.
Max assim comentou a cena:

“Nossos sapatos ficaram arruinados e os tailandeses, convenientemente descalços, continuaram a trabalhar normalmente. Uma parte de Bangkok (eu e o Denis não sabíamos nem tivemos a humildade para pesquisar), é entrecortada por canais, cujo nível oscila com as marés. O que os trabalhadores estavam tentando nos dizer não tinha nada a ver com humildade. Era um aviso: “Tirem os sapatos depressa, antes que a água suba!”. Os sapatos deles – e todos eles tinham bons sapatos – estavam guardados e bem protegidos, nos vestiários da fábrica”.

Errando o foco

Max e Denis erraram completamente o foco da humildade. Pensaram estar agindo sob os auspícios da virtude e da empatia, quando na verdade, haviam desvirtuado a realidade. Não observaram corretamente o cenário que os cercava e com isso erraram as suas atitudes.

Assim como Max temos tido uma compreensão equivocada acerca da humildade. Um entendimento superficial da verdadeira virtude registrada nas páginas da Bíblia Sagrada. Nossas mentes medíocres e insensatas permanecem incapazes de assimilá-la. Nossos valores ainda não foram corretamente moldados à luz dos ensinamentos de
Cristo.

Continuamos querendo dar “calçados novos” para as outras pessoas ao invés de “andarmos descalços”. Insistimos em dar presentes no lugar de conhecer necessidade. Tencionamos agradar o próximo, sem levar em consideração o cenário que os rodeia. Resultado de uma pseudo-humildade. Uma humildade fraca, sem propósitos e egoísta, revestida de mui bela aparência, porém, desprovida de conteúdo.

Cristo, o verdadeiro padrão de humildade.

Esse cenário leva-nos à busca de uma melhor compreensão acerca da verdadeira e maravilhosa humildade. Aquela que é o objetivo de Deus para a vida de seus filhos, cujo objeto está no próximo e não em si mesmos. Aquela que detêm o sabor do fruto do espírito, o conteúdo que alimenta a alma e exala aromas inefáveis. Aquela que é portadora da simplicidade do evangelho, que é prudente e constante.

Jesus foi e ainda é o melhor modelo de simplicidade. Da sua vida, de seus atos e das suas palavras é possível extrairmos lições e mais lições sobre humildade. Ensinamentos que se reunidos formariam uma biblioteca infindável para o conhecimento e deleite do homem. As lições que aprenderemos com o Filho de Deus não possuem somente grande extensão, mas, sobretudo, profundidade. Ensinamentos que trazem no seu bojo a sustância para alma que é capaz de transformar pensamentos e mudar as condutas.

Os judeus da época de Cristo esperavam um Messias segundo a conveniência deles. Um Rei que regeria com mão de ferro as nações. Destruiria o exército romano num assopro. Acabaria com os inimigos num piscar de olhos.

Poderoso. Dominador. Soberano. Eram essas as características que os judeus esperavam do Messias que havia de vir. Não se passava no pensamento deles, nem nos seus mais remotos sonhos, que o Messias seria humilde, simples, um servo por excelência.

Os “filhos de Abraão” aguardavam um Messias detentor das mesmas características do Deus do Antigo Testamento. O Deus de Moisés que enviou a sete pragas sobre o Egito e destruiu Faraó. O Deus de Josué que tomou a cidade de Jericó. O Deus de Gideão que destruiu os amonitas. O Deus de Davi que exterminou os seus inimigos.

Ao falar sobre a humildade de Cristo, Philip Yancey assim expressou:

“Humildade. Antes de Jesus, quase nenhum escritor pagão utilizou a palavra “humildade” como elogio. Mas os acontecimentos do Natal apontam inevitavelmente para o que parece um paradoxo: Um Deus humilde. O Deus que veio à terra não veio num redemoinho arrasador, nem num fogo devorador. O Criador de todas as coisas encolheu-se além da imaginação, tanto, tanto, tanto, que se tornou um óvulo, um simples ovo fertilizado, quase invisível, um óvulo que se dividiria e se redividiria até que um feto fosse formado, expandido-se célula por célula dentro de uma irriquieta jovem”

Já no seu nascimento o Filho de Deus demonstra categoricamente que a humildade seria uma das suas maiores características enquanto homem. Se refletirmos acerca da forma como Cristo veio à terra, observaremos os enormes contrastes entre a sua vida celestial e terrena. Num momento Jesus está no céu rodeado de anjos que o glorificam. Noutro, está rodeado de animais. Num instante Cristo é dono dos céus. Noutro, seus pais brigam por um espaço para coloca-lo.

Sobre esse enorme contraste Yancey cita Figgis:

“O Messias que se apresentou, entretanto, usava um diferente tipo de glória, a glória da humildade. “Deus é grande”, a exclamação dos muçulmanos, é um verdade que não precisa ser sobrenatural para ensinar os homens”, escreve Neville Figgis. “Que Deus é pequeno, essa é a verdade que Jesus ensinou ao homem”. O Deus que trovejava, que podia movimentar exércitos e impérios como peões num tabuleiro de xadrez, esse Deus apareceu na Palestina como um nenê que não podia falar, nem comer alimento sólido, nem controlar a bexiga, que dependia de uma jovem para receber abrigo, alimento e amor”.

“Em humilde contraste, a visita de Deus à terra aconteceu num abrigo para animais, sem assessores presentes e sem lugar para deitar o rei recém-nascido além de um cocho. De fato, o acontecimento que dividiu a história, e até mesmo nossos calendários, em duas partes, talvez tenha tido mais testemunhas animais que humanas. Uma mula poderia Ter pisado nele. “Tão silenciosamente o maravilhoso Dom foi dado”.

Ao fazermos essas considerações, várias indagações nos vêm mente. Ele nasceu em um estábulo. Teve pais muito pobres. Viveu em total obscuridade na Galiléia. Por que Jesus assumiu uma posição tão baixa em sua encarnação?

A resposta: Para que soubéssemos que ninguém fica fora de sua graça; todos são importantes aos olhos de Deus. Jesus identificou-se com aqueles que estão no degrau mais baixo da escada, o que significa que todos têm esperança por causa da encarnação do verbo; por causa da descida de Deus. Quer seja branco ou negro, rico ou pobre, bonito ou feio. Todos são iguais aos olhos de Dele.

De fato, o objetivo principal de Jesus ao descer era colocar-se no lugar de cada ser humano. Não bastava tão somente uma obra de salvação constituída meramente por palavras, era necessário um ato de salvação, uma atitude de redenção. E foi exatamente o que Deus fez, largou as vestes gloriosas do céu e tomou as panos da humanidade. Deixou a magnitude do firmamento pela simplicidade terrena. Fez isso porque sabia exatamente qual era a nossa necessidade.

Lavando os pés sujos dos discípulos

Um dos momentos marcantes da vida de Cristo e prova irrefutável da humildade do Mestre, é, segundo a minha ótica, o momento em que Ele lava os pés dos seus discípulos quando do evento da última ceia.

O Emanuel, já próximo ao término do plano de redenção, à beira do encontro com a cruz, efetua aquele que seria uma das maiores lições para os seus discípulos. Um ato que marcaria profundamente a lembrança dos seus apóstolos.

Após a ceia da Páscoa (João 13), Jesus apanha uma toalha e coloca água dentro da bacia. Imaginemos a surpresa dos discípulos ao verem Jesus se levantar da ceia, tirar o manto, isto no meio da ceia pascal, um momento particularmente solene. Eles devem ter se entreolhado com os pensamentos confusos: “O que é que Ele está fazendo agora?” Era muito estranho!

E o Mestre começa a lavar os pés de seus discípulos, um por um. Ao chegar, porém, a vez do impetuoso Pedro, a situação muda. Simão deve ter olhado para os seus pés, tão sujos e encardidos quanto o chão poeirento da Palestina. Vislumbra a face meiga de Cristo e solta uma das suas:

– Nunca me lavarás os pés!

Pedro, ou estava envergonhado da sujeira dos seus pés, ou julgava-se indigno de tê-los lavados por seu Mestre.
Jesus, sem levar isso em consideração adverte:
– Se eu te não lavar, não tens parte comigo.
– Ah Senhor! Lava-me as mãos e cabeça também – Disse-lhe então Pedro:

Esse fato deveria marcar também as nossas vidas com pelos menos duas lições daí provenientes. Primeiro: Não importa quão sujos estejam os nossos pés, o importante para Jesus é que sejam limpos. O objetivo Dele é que as suas águas purificadoras nos lave. Segundo: A humildade demonstrada pelo Filho de Deus é o padrão de virtude capaz de estilhaçar a falsa humildade hoje existente. Que a pseudo-humildade dê lugar a uma maravilhosa humildade proveniente de amor de Deus.

Eis, então, algo difícil: entronizar a humildade tal qual Cristo. Até parece utópico. Uma meta inatingível. Considerar, como disse Paulo, os outros superiores a nós mesmos, nas folhas opacas da Bíblia parece um tarefa fácil, porém, na prática a situação é inversa. Fazer da humildade um modo de vida, parece ser o mesmo que querer tocar as estrelas com a mão, principalmente quando observamos a sociedade em que vivemos, onde impera o egoísmo e o individualismo, que de uma forma ou de outra acaba contagiando os cristãos.

De fato. Isso não é uma tarefa fácil! Se até mesmo os discípulos não chegaram a tamanha perfeição. Nós chegaremos? Se até mesmo alguns dos discípulos foram arrogantes a ponto de disputarem para ver quem se sentaria ao lado de Jesus no céu. Imagine nós?!

Mas quem disse que ser cristão é fácil? Quem falou que ser humilde é moleza?

Precisamos ter Jesus como modelo. Fazer dele o nosso paradigma, nossa meta a ser atingida. Não podermos ser humildes somente para as pessoas em nossa volta nos consideram como tal. Afinal, a humildade deixa de ser uma virtude assim que nós fazemos dela uma capa colorida para prender e despertar o interesse do próximo. A humildade deve nascer do corações. Ter como fonte o íntimo de cada um. Não pode ser um atitude ensaiada, tampouco possuir finalidades de marketing pessoal.

Se mesmo assim, chegarmos a conclusão de que ser humildade é algo extremamente penoso. Que é quase impossível não conseguirmos lavar os pés do próximo. Então, que pelo menos tiremos os nossos sapatos. Antes que as águas subam!

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